quarta-feira, fevereiro 22, 2012

Emaranhamento quântico na biologia. Será?

Durante muito tempo acreditou-se que as estranhas propriedades da mecânica quântica se restringiam ao mundo físico microscópico. Descobertas recentes mostram que não é bem assim. Carlos Alberto dos Santos aborda o tema em sua coluna de julho.

Por: Carlos Alberto dos Santos

Publicado em 29/07/2011 | Atualizado em 29/07/2011

Emaranhamento quântico na biologia. Será?

Estudos mostram que as leis da mecânica quântica também valem na natureza, extrapolando assim o campo da física e invadindo a biologia. Entender melhor essas leis é essencial para o desenvolvimento de computadores quânticos. (montagem: Sofia Moutinho)

Em seu maravilhoso livro O que é vida? O aspecto físico da célula viva, o físico austríaco Erwin Schrödinger (1887-1961) refere-se aos organismos multicelulares como a “mais requintada obra-prima já conseguida pelas leis da mecânica quântica”. Frente a recentes observações de efeitos quânticos na natureza e em seres vivos, não podemos deixar de apreciar o caráter premonitório da sua frase.

O tunelamento quântico, tema explorado e explicado na última coluna, está indiscutivelmente presente em processos bioquímicos e é consequência da dualidade partícula-onda, um dos grandes mistérios da natureza para o físico estadunidense Richard Feynman (1918-1988).

Outro fenômeno que se vale da dualidade partícula-onda é o emaranhamento ou entrelaçamento quântico, o fermento de um intenso debate na comunidade científica a respeito de sua observação em sistemas biológicos. Trata-se de uma propriedade ainda mais complexa e menos intuitiva do que o tunelamento e de cujo controle depende, por exemplo, o desenvolvimento da computação quântica.

Nas condições em que a matéria deve ser tratada sob a ótica da teoria quântica, cada partícula (elétron, próton, átomos, entre outras) é caracterizada por um conjunto de propriedades, intrínsecas (spin) ou circunstanciais (por exemplo, posição, velocidade e interação com outras partículas). Tais propriedades determinam o que se denomina de estado ou nível quântico, geralmente representado em termos de energia.

Quando duas dessas partículas interagem (não interessa aqui a que tipo de interação nos referimos), os dois estados quânticos se misturam, resultando em um novo estado composto pelas duas partículas (vamos supor o caso simples de apenas duas partículas). Tecnicamente se diz que houve uma superposição dos estados das partículas individuais.

Partículas emaranhadas

Quando duas partículas estão emaranhadas, elas perdem suas características individuais e passam a funcionar como um único sistema. Se não houver ruído, a interação continua mesmo quando estão separadas por longas distâncias. (imagem: Miroslav Kostic/ Sxc.hu; montagem: Sofia Mountinho)

Esse estado composto, ou emaranhado, é tal que as informações individuais das partículas são perdidas. O emaranhado quântico representa o conjunto e reflete apenas as correlações entre os seus componentes. O que diz a teoria quântica é que essa correlação continua mesmo depois que as partículas são separadas. Uma tese bem conhecida e controvertida é de que a correlação é preservada mesmo que a separação seja infinita.

A propriedade necessária, mas não suficiente para a existência do emaranhado, é essa correlação quântica. O problema é que a correlação ou coerência quântica é muito instável, depende fortemente da temperatura e do meio ambiente, que geralmente funciona como um sistema ruidoso.

De modo um tanto ingênuo, podemos dizer que o aumento de temperatura ou do nível de ruído provoca a perda do estado de coerência quântica, fazendo desaparecer o emaranhado. Essa grande sensibilidade tem sido a principal barreira para o aproveitamento tecnológico do emaranhado quântico.

Emaranhamento na fotossíntese


Compreender a razão da grande eficiência da conversão da energia solar em energia química no processo da fotossíntese tem sido um desafio permanente enfrentado por pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento (Leia a coluna O big bang da evolução).

Há menos de uma década, medidas óticas ultrarrápidas realizadas por pesquisadores do Instituto Max Planck, na Alemanha, e da Universidade de Leiden, na Holanda, liderados por V. I. Prokhorenko, evidenciaram a existência de coerência quântica na fotossíntese, motivando uma série de experimentos com diversos materiais biológicos e especulações sobre a existência de emaranhado quântico em circunstâncias até então consideradas improváveis – por exemplo, em temperatura ambiente, que é considerada muito alta, e em um ambiente claramente ruidoso.

Enzimas em materiais fotossintetizantes teriam passado por um processo evolutivo para fazer uso eficiente da energia solar por meio de processos quânticos

O debate ficou mais acirrado quando uma hipótese ainda mais controvertida foi levantada por alguns pesquisadores, entre os quais a química Judith Klinman, da Universidade da Califórnia, em Berkeley, Estados Unidos, e uma das pioneiras no estudo de tunelamento quântico em proteínas: as enzimas nesses materiais fotossintetizantes teriam passado por um processo evolutivo para fazer uso eficiente da energia solar por meio de processos quânticos.

Os opositores da hipótese, como o químico Gregory Scholes, da Universidade de Toronto, Canadá, afirmam que os mecanismos quânticos não passam de um acidente no modo como essas moléculas atuam. Ou seja, os organismos escolheriam rotas diferentes por acaso e não porque essa ou aquela são mais eficientes. Na verdade, Scholes afirma que não há dados experimentais suficientes sequer para se levantar a questão.

Coerência prolongada


Outro mistério biológico que parece começar a ser desvendado com o uso da teoria quântica é a influência do campo magnético no processo de orientação e navegação de aproximadamente 50 espécies animais, como das formigas, raposas, gado e pombos-correios.

O objeto aqui é bem diferente dos materiais fotossintetizantes, mas por trás do processo há algo em comum, que é a separação de cargas induzida pela absorção da luz solar na retina dos animais. Essa absorção resulta na liberação de um par de elétrons.

Como os elétrons estão em ambientes ligeiramente diferentes, eles têm seus spins orientados diferentemente. Esses estados de orientação dependem da inclinação das moléculas na retina em relação ao campo magnético terrestre. Portanto, o processo de fotoionização resulta em um par de elétrons com spins correlacionados.

Campo magnético da Terra

O campo magnético da Terra, que protege a superfície do planeta das partículas carregadas do vento solar, influencia a orientação de várias espécies de animais. A causa ainda é um mistério, que começa a ser desvendado pela mecânica quântica. (foto: Nasa)

Estudos teóricos recentes, realizados por pesquisadores da Universidade de Oxford e da Universidade Nacional de Singapura, liderados por Simon Benjamin, têm mostrado que esse estado de correlação ou coerência quântica tem se mantido por intervalos de tempo da ordem de centenas de microssegundos, algo inimaginável. Estimativas teóricas até o momento não passavam da ordem de um microssegundo.

Qualquer que seja o resultado do debate em torno do processo evolutivo das enzimas dos materiais fotossintetizantes e da orientação magnética de animais, o fato importante que aparentemente todos concordam é que fenômenos genuinamente quânticos desempenham papel preponderante em alguns processos biológicos.

Fenômenos genuinamente quânticos desempenham papel preponderante em alguns processos biológicos

Há quem acredite que a computação quântica poderá avançar a partir de uma compreensão mais profunda do processo de transmissão de energia na fotossíntese e do mecanismo de proteção utilizado pelos pássaros para aumentar o tempo de coerência quântica.

Aprender com a natureza é um desejo e uma busca do homem desde tempos imemoriais. Mas agora essa espécie de simbiose quântico-biológica parece atingir um estágio antes inimaginado.

Carlos Alberto dos Santos
Professor-visitante sênior da Universidade Federal da Integração Latino-americana

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